Ao assistir ontem a noite às cenas do incêndio na TV, fiquei mudo e perplexo. Minha primeira reação só veio depois de passar horas assistindo ao incêndio, como para me certificar de que aquilo não era só um pesadelo. Enviei uma breve mensagem para amigos e para colegas de outros países com o máximo que podia expressar no momento: “O museu nacional do Rio de Janeiro completamente destruído pelo fogo, que já dura 5 horas. 200 anos de história científica. Milhares de anos de fontes documentais. Uma das melhores bibliotecas de antropologia do pais. Uma centena de carreiras destruídas. Uma tragédia inestimável, que é a metáfora de uma tragédia ainda maior”. Fui dormir com o peito apertado de dor, raiva e medo.
Estudei no Museu Nacional por mais de dez anos. Comecei em 1989, antes de entrar no mestrado, como estagiário, recém formado em História, do grupo PETI – Projeto Estudo sobre Terras Indígenas. Trabalhei no arquivo histórico e etnológico que a equipe do PETI havia reunido, sob a coordenação dos professores João Pacheco e Antônio C. S. Lima, e que daria origem ao Atlas dos Povos Indígenas do Nordeste (1990). Neste período me encantei com os debates públicos promovidos por professores e estudantes do PPGAS-MN sobre as políticas públicas para indígenas, e que tinham repercussões reais sobre estas mesmas políticas. Uma experiência que me apontou a possibilidade de fundir História e Antropologia, assim como de fazer isso com alguma potência transformadora sobre a realidade.
Depois foram dez anos como aluno, em uma época em que os tempos de pesquisa e redação regulamentares de uma dissertação e de uma tese eram quatro e seis anos. A formação no PPGAS do Museu Nacional é uma marca profunda em todos que passaram por lá. Éramos alunos dos principais nomes formadores da Antropologia brasileira em várias das suas sub-áreas e isso nos era cobrado macia e constantemente. Em torno de um dos pátios internos do grande prédio do Museu Nacional ficavam a sala de aula, as salas dos professores, a secretaria e a Biblioteca Francisca Keller, uma fonte de pesquisa inesgotável, que nos dava acesso tanto à história das Ciências Sociais brasileiras, quanto à bibliografia antropológica internacional mais atualizada.
Entre uma atividade e outra, atravessávamos o pátio como quem atravessa um cenário suspenso no tempo, silencioso e cerimonioso, mas que, desde então, mostrava o desgaste da falta de recursos. Já eram dilemas para a administração da época, tanto a falta de espaço para o contínuo crescimento da biblioteca, quanto o risco que todos nós corríamos com a queda de um ou outro pedaço de reboco do beiral do prédio histórico. Isso contrastava com a certeza de que estávamos imersos em um espaço de saber e ciência, que todos nós reverenciávamos, e cuja alegoria eram os corredores de paredes cobertas de móveis centenários de madeira, com gavetas de fichas de catálogo ou com vitrines que expunham milhares de minúsculas e maiúsculas peças arqueológicas.
O Museu Nacional era uma das nossas instituições maiores, em todos os sentidos. Símbolo da possibilidade que o trabalho intelectual tem em converter um projeto civilizatório imperial em um projeto civilizatório democrático, forjado na luta do saber contra preconceitos, racismos e relações de poder desiguais. Esta instituição foi destruída, não por um acidente, mas por um projeto político concorrente. A destruição do Museu Nacional é a marca mais dolorosa do momento crítico a que a sociedade nacional chegou, ao se degradar na política da ignorância, da opinião sustentada no meme, do egoísmo transformado em teologia, do mercado que não alimenta, mas que se alimenta da vida. A destruição do Museu Nacional é o ato mais espetacular de uma sucessão de atos destinados à destruir a ciência, a arte, a história e a memória brasileiras.
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