segunda-feira, 3 de novembro de 2014

Toré, praiá, aió e croá: notas sobre mobilidades, transformações e reflexividade cultural

Palestra na UFSC, sexta feira, 07 de novembro de 2014

Esta apresentação discutirá algumas das tensões e transformações que vem se operando na relação entre sociedades indígenas e sua cultura material, tendo por foco os Pankararu e, em especial, sua mobilidade sertão-metrópole. Depois de explorar o papel e os significados da mobilidade e da ritualidade sobre a própria definição étnica dos pankararu, nosso foco será um dos efeitos da mobilidade citadina-metropolitana sobre o dinâmica ritual aldeã-sertaneja.

Croá - arbusto da família das bromélias (Bromeliaceae Neoglaziovia  variegata) endêmico da região sertaneja, que dá a única fibra com a qual os Praiá podem ser ‘levantados’. Por extensão do seu uso religioso, a própria planta do croá é considerada mágica e tanto a sua coleta, quanto o seu uso estão sujeitos a processos rituais. Ele não é cultivado (porque ‘tem seu segredo’) e o homens, únicos que podem ir ao ‘mato’ (caatinga) colhe-lo. Antes de partirem, porém, devem se submeter a um processo de purificação ritual: permanecer três dias sem contato (sexual) com mulher, banhar-se com ervas e se reunir para fumar o campiô (cachimbo cônico) de forma cerimonial, pedindo autorização para entrar no mato. Eventualmente tal autorização pode não ser dada, isto é, no momento do campiô ou da entrada no mato, a natureza ou os encantados podem dar sinais de desaprovação, o que implica reiniciar o processo em outro momento. Das folhas do croá verde é retirada a fibra com a qual será produzida a corda que é usada para tecer ‘o roupão dos homens’, mas também o aió.

Aió - pequena bolsa que os pankararu usam, cruzada sobre o peito, em seu cotidiano para carregar fumo e pequenos pertences. A tradição no uso do aió, apesar de não ser antiga, tornou-se um dos traços culturais característicos dos pankararu.  A peça é feita de fibra de croá trançada em três tipos de ‘pontos’, um para o corpo da bolsa, outro para o gancho que a liga à sua alça e outro para a sua alça. Também é característico que o aió tenha pintado, sempre com tintas azul e vermelha, o desenho de um pequeno praiá, completando o vínculo existente entre croá, praiá e aió. Apesar de hoje ser reconhecido como uma peça característica – ainda que não exclusiva - dos pankararu, ele deriva de uma invenção artesanal realizada, na década de 1970, por João Gouveia, a partir dos ensinamentos preliminares de um companheiro Fulni-ô, de quem ficou amigo em uma jornada de trabalho braçal fora da área. Tendo incorporado apenas o conceito geral do aió Fulni-ô, e sem contar com um modelo para reproduzir a peça, depois de voltar para casa João Gouveia passou a trabalhar de memória na construção de um aió até conseguir uma peça útil, para o que teve que (re)criar os pontos atualmente característicos do aió pankararu. Mesmo quando destinado à confecção do aió, o croá está submetido ao mesmo processo ritual de extração.

Museu-Escola - construção recente destinada a abrigar antigas peças de uso cotidiano, doadas por moradores mais velhos, assim como uma variedade de produções artesanal, que pode ter sido colhida de artesãos ou produzida no próprio Museu-Escola, por meio das oficinas oferecidas pelos professores de Arte e Cultura Indígena aos estudantes das escolas indígenas. Tanto o conceito do Museu-Escola quanto a disciplina Arte e Cultura Indígena são novos e, em parte, produto da militância dos professores pankararu frente ao movimento de professores indígenas de Pernambuco. A disciplina hoje faz parte da grade de disciplinas previstas para as escolas indígenas e os seus professores são contratados especificamente para esta função, alguns deles não tendo habilitação pedagógica, mas sendo reconhecidos em suas habilidades afins à disciplina. As aulas de Arte e Cultura Indígena são, assim, ministradas no Museu-Escola, e não nas escolas regulares.

Os pankararu contemporâneos conquistaram direitos, territoriais, educacionais e sanitários, cresceram demograficamente, se expandiram territorialmente, assim como se modernizaram sob diversos aspectos. Se em meados dos anos de 1990 a população da TI Pankararu era de aproximadamente 3.000 habitantes, que não possuíam mais que três escolas do primeiro ciclo do ensino básico dentro da área indígena; atualmente eles passam dos 7.000 moradores, que dispõem de 20 escolas indígenas (várias com ensino médio), com todos os seus mais de 200 professores indígenas. Além disso, dezenas de os jovens pankararu estão cursando ensino superior em universidades de diferentes estados do país, em áreas que vão das tradicionais Pedagogia e Serviço Social, até o Direito e a Medicina, passando por História, Linguistica etc.
Além disso, a migração que começaram a realizar para São Paulo, junto a tantos outros nordestinos em fuga das secas e da falta de terras, e que deu origem a ao menos duas importantes concentrações urbanas, os pankararu da favela do Real Parque (município do Morumbi) e da zona Leste, começou a ser revertida. É comum que, depois de se aposentarem, os pankararu que foram trabalhar em São Paulo retornem para a Terra Indígena, com os recursos de sua aposentadoria, para desfrutarem de sua terra natal e da vida ritual da aldeia.
Assim, em lugar da modernização do cotidiano pankararu levar a um enfraquecimento da sua vida ritual (modernidade = desencantamento), pelo contrário, ela tem se revigorado. De um lado, os estudantes e os jovens universitários, são inspirados diretamente por seus professores indígenas (que hoje ministram disciplinas especiais como Arte e Cultura Indígena e mantém um Museu-Escola sobre sua cultura material) ou mobilizados por uma compreensão política do papel da cultura, de forma que cada vez mais tendem a recusar fórmulas comuns de sincretismo religioso em nome de um retorno às tradições. De outro, os velhos que se urbanizaram retornam à aldeia em uma situação materialmente muito mais confortável do que aquela em que a deixaram, e assim tem condições de aportar recursos à produção ritual.

Em função desses vetores, nos últimos anos o crescimento do número de praiás ‘levantados’ ultrapassou qualquer média ou proporção histórica, que costumava ficar entre seis e doze por cada terreiro, enquanto os próprios terreiros não ultrapassavam muito o número de seis. Hoje, porém, é possível contar mais de 450 praiás na TI Pankararu e estes são requisitados tão frequentemente para a realização dos Torés, que os “roupões dos homens” passaram a ser refeitos anualmente, o que implica em uma demanda de croá que tem levado ao risco de sua extinção dentro da TI. Isso leva à criação tanto de iniciativas de replantio do Croá dentro da área indígena, quanto de um mercado de croá que, pelas razões já expostas, só pode ser feito com fornecedores indígenas de outras TIs do Nordeste, e, especial aquelas que mantém parentesco com os pankararu. 

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