Palestra na UFSC, sexta feira, 07 de novembro de 2014
Esta apresentação discutirá algumas das tensões e
transformações que vem se operando na relação entre sociedades indígenas e sua
cultura material, tendo por foco os Pankararu e, em especial, sua mobilidade
sertão-metrópole. Depois de explorar o papel e os significados da mobilidade e
da ritualidade sobre a própria definição étnica dos pankararu, nosso foco será um
dos efeitos da mobilidade citadina-metropolitana sobre o dinâmica ritual aldeã-sertaneja.
Croá - arbusto da família das bromélias (Bromeliaceae Neoglaziovia variegata) endêmico da região sertaneja, que
dá a única fibra com a qual os Praiá podem ser ‘levantados’. Por
extensão do seu uso religioso, a própria planta do croá é considerada mágica e
tanto a sua coleta, quanto o seu uso estão sujeitos a processos rituais. Ele
não é cultivado (porque ‘tem seu segredo’) e o homens, únicos que podem ir ao
‘mato’ (caatinga) colhe-lo. Antes de partirem, porém, devem se submeter a um processo de
purificação ritual: permanecer três dias sem contato (sexual) com mulher,
banhar-se com ervas e se reunir para fumar o campiô (cachimbo cônico) de forma
cerimonial, pedindo autorização para entrar no mato. Eventualmente tal
autorização pode não ser dada, isto é, no momento do campiô ou da entrada no
mato, a natureza ou os encantados podem dar sinais de desaprovação, o que implica
reiniciar o processo em outro momento. Das folhas do croá verde é retirada a
fibra com a qual será produzida a corda que é usada para tecer ‘o roupão dos
homens’, mas também o aió.
Aió - pequena bolsa que os pankararu usam, cruzada sobre o
peito, em seu cotidiano para carregar fumo e pequenos pertences. A tradição no
uso do aió, apesar de não ser antiga, tornou-se um dos traços culturais
característicos dos pankararu. A peça é
feita de fibra de croá trançada em três tipos de ‘pontos’, um para o corpo da
bolsa, outro para o gancho que a liga à sua alça e outro para a sua alça.
Também é característico que o aió tenha pintado, sempre com tintas azul e
vermelha, o desenho de um pequeno praiá, completando o vínculo existente entre
croá, praiá e aió. Apesar de hoje ser reconhecido como uma peça característica
– ainda que não exclusiva - dos pankararu, ele deriva de uma invenção artesanal
realizada, na década de 1970, por João Gouveia, a partir dos ensinamentos
preliminares de um companheiro Fulni-ô, de quem ficou amigo em uma jornada de
trabalho braçal fora da área. Tendo incorporado apenas o conceito geral do aió
Fulni-ô, e sem contar com um modelo para reproduzir a peça, depois de voltar
para casa João Gouveia passou a trabalhar de memória na construção de um aió até
conseguir uma peça útil, para o que teve que (re)criar os pontos
atualmente característicos do aió pankararu. Mesmo quando destinado à confecção
do aió, o croá está submetido ao mesmo processo ritual de extração.
Museu-Escola - construção recente destinada a abrigar
antigas peças de uso cotidiano, doadas por moradores mais velhos, assim como
uma variedade de produções artesanal, que pode ter sido colhida de artesãos ou
produzida no próprio Museu-Escola, por meio das oficinas oferecidas pelos
professores de Arte e Cultura Indígena aos estudantes das escolas indígenas.
Tanto o conceito do Museu-Escola quanto a disciplina Arte e Cultura Indígena
são novos e, em parte, produto da militância dos professores pankararu frente
ao movimento de professores indígenas de Pernambuco. A disciplina hoje faz parte
da grade de disciplinas previstas para as escolas indígenas e os seus
professores são contratados especificamente para esta função, alguns deles não
tendo habilitação pedagógica, mas sendo reconhecidos em suas habilidades afins
à disciplina. As aulas de Arte e Cultura Indígena são, assim, ministradas no
Museu-Escola, e não nas escolas regulares.
Os pankararu contemporâneos conquistaram direitos,
territoriais, educacionais e sanitários, cresceram demograficamente, se
expandiram territorialmente, assim como se modernizaram sob diversos aspectos.
Se em meados dos anos de 1990 a população da TI Pankararu era de aproximadamente
3.000 habitantes, que não possuíam mais que três escolas do primeiro ciclo do
ensino básico dentro da área indígena; atualmente eles passam dos 7.000
moradores, que dispõem de 20 escolas indígenas (várias com ensino médio), com
todos os seus mais de 200 professores indígenas. Além disso, dezenas de os
jovens pankararu estão cursando ensino superior em universidades de diferentes
estados do país, em áreas que vão das tradicionais Pedagogia e Serviço Social,
até o Direito e a Medicina, passando por História, Linguistica etc.
Além disso, a migração que começaram a realizar para São
Paulo, junto a tantos outros nordestinos em fuga das secas e da falta de
terras, e que deu origem a ao menos duas importantes concentrações urbanas, os
pankararu da favela do Real Parque (município do Morumbi) e da zona Leste,
começou a ser revertida. É comum que, depois de se aposentarem, os pankararu que
foram trabalhar em São Paulo retornem para a Terra Indígena, com os recursos de
sua aposentadoria, para desfrutarem de sua terra natal e da vida ritual da
aldeia.
Assim, em lugar da modernização do cotidiano pankararu levar
a um enfraquecimento da sua vida ritual (modernidade = desencantamento), pelo
contrário, ela tem se revigorado. De um lado, os estudantes e os jovens
universitários, são inspirados diretamente por seus professores indígenas (que
hoje ministram disciplinas especiais como Arte e Cultura Indígena e mantém um
Museu-Escola sobre sua cultura material) ou mobilizados por uma compreensão
política do papel da cultura, de forma que cada vez mais tendem a recusar
fórmulas comuns de sincretismo religioso em nome de um retorno às tradições. De
outro, os velhos que se urbanizaram retornam à aldeia em uma situação
materialmente muito mais confortável do que aquela em que a deixaram, e assim
tem condições de aportar recursos à produção ritual.
Em função desses vetores, nos últimos anos o crescimento do
número de praiás ‘levantados’ ultrapassou qualquer média ou proporção
histórica, que costumava ficar entre seis e doze por cada terreiro, enquanto os
próprios terreiros não ultrapassavam muito o número de seis. Hoje, porém, é
possível contar mais de 450 praiás na TI Pankararu e estes são requisitados tão
frequentemente para a realização dos Torés, que os “roupões dos homens”
passaram a ser refeitos anualmente, o que implica em uma demanda de croá que
tem levado ao risco de sua extinção dentro da TI. Isso leva à criação tanto de
iniciativas de replantio do Croá dentro da área indígena, quanto de um mercado
de croá que, pelas razões já expostas, só pode ser feito com fornecedores
indígenas de outras TIs do Nordeste, e, especial aquelas que mantém parentesco
com os pankararu.