quinta-feira, 7 de outubro de 2021

Prefácio ao livro "As trajetórias e resistências das comunidades quilombolas do Pantanal Su-matogrossense", de João Batista Souza




























Souza, João Batista Alves de. As trajetórias e resistências das comunidades quilombolas do Pantanal Sul-Mato-grossense [livro eletrônico] / João Batista Alves de Souza. -- 1. ed. -- Porto Alegre, RS : TotalBooks, 2021. PDF Bibliografia. ISBN 978-65-88393-17-8



Prêmio CAPES de Melhor tese de Geografia Edição 2022
EDITAL Nº 11/2022 / Processo nº 23038.000014/2022-15

PREFÁCIO

O trabalho de João Batista Alves de Souza nos oferece uma experiência de geografia histórica adaptada à temática das pequenas comunidades, apreendidas em seu contexto regional. Trata-se de um trabalho interessado na reconstrução dos fenômenos e processos centrais à compreensão geográfica das trajetórias históricas e das configurações sociais de três comunidades quilombolas ribeirinhas de Corumbá (MS), as comunidades Família Ozório, Família Campos Correia e Maria Theodora, levando em conta os padrões de ocupação sociambiental do pantanal, mas também o ambiente cultural construído por tais comunidades neste contexto. Sua análise busca reconstituir como o processo de criação de paisagens em um determinado espaço está vinculado à materialidade de um período histórico particular e seu macro-contexto. Um dos desafios do trabalho, portanto, é a exigência de mobilizar uma série de disciplinas ou saberes "vizinhos", como a economia, antropologia, ecologia e, evidentemente, a história, de forma a associar paisagens e modos de organização sócio-cultural-espacial.

A originalidade do modo pelo qual o trabalho enfrenta este desafio pode ser medida por seu distanciamento em relação aos programas de análise imediatamente disponíveis. De um lado, este trabalho não pode ser mecanicamente associado ao projeto da geografia histórica conforme definido por Milton Santos, por exemplo, ou seja, pelo interesse nos processos históricos de modernização dos lugares provocado pela difusão dos objetos técnicos. Pelo contrário, seu interesse é justamente compreender a instituição de tradicionalidades, por meio da construção dos chamados ‘territórios tradicionalmente ocupados’. Por outro lado, a análise apresentada aqui complexifica a noção de ‘tradicionalmente ocupado’ ao propor que, no centro desta forma de ocupação, estão a mobilidade, a multipolaridade e a multiterritorialidade, o que o distancia criativamente da monografias pautadas na descrição de territórios com limites mais ou menos fixos e estáveis.

Assim, este livro nos oferece uma contribuição relevante ao crescente repertório de descrições e análises da diversidade de formas de espacialização das sociedades quilombolas e de suas concepções sobre o território. Neste caso específico, um território assentado em redes simbólicas e afetivas, fundamentais na manutenção de vínculos sociais e condições materiais de reprodução social. Um território marcado não apenas pela apropriação da terra, mas pela circulação pela água. O rio Paraguai é quase um personagem a mais das narrativas oferecidas, na medida em que opera não apenas como meio fundamental de circulação dessas comunidades, em seus fluxos históricos e cotidianos, mas também agindo sobre elas, por meio das suas cheias e vazantes, que condicionam, dirigem e marcam a história de vida de indivíduos e coletividades. A análise oferecida dissolve por completo a ilusão de unidade, unicidade e isolacionismo que continua a rondar os trabalhos sobre territórios quilombolas.

Esta qualidade está ligada a outra: ter sido capaz de cartografar uma narrativa história fragmentária, que cobre um arco de cem anos e acrescenta mais uma peça no quebra-cabeças da mobilidade negra do pós-abolição. A opção pelo uso da noção de trajetória, aplicada tanto a indivíduos quanto a coletividades, ajuda na construção deste objeto analítico - que poderíamos conceber como um objeto por excelência da geografia histórica: o movimento no espaço de grandes massas populacionais, produzido por eventos históricos globais, como a abolição da escravidão, e que constrói novos espaços e paisagens regionais-locais. O tema da Great Migration ou Black Migration, que é matéria da historiografia e de uma larga produção memorial, artística e literária nos Estados Unidos, ganhou entre nós outros contornos, quase invisíveis, com certeza muito menos nítidos, mas não menos épicos. Nos EUA a grande migração negra movimentou cerca de 6 milhões de pessoas do sul rural até as regiões urbanas do Nordeste, Oeste e Centro-Oeste entre as décadas de 1910 e 1970, em um movimento canalizado pelas grandes linhas de ferro. No Brasil um fenômeno provavelmente equivalente, mas muito mais disperso, realizado não por meio dos trilhos de trem, mas por pernas, mulas e barcos, dispersou a população negra das grandes concentrações escravistas do sudeste em todas as direções em que havia uma fronteira aberta. Um movimento que permanece apenas esboçado e sugerido por nossa historiografia e cuja descrição adequada exige a soma de muitos trabalhos pontuais e localizados, como o que temos em mãos.

Finalmente, a última qualidade que gostaria de destacar no trabalho do João, é o seu compromisso em revelar uma realidade apagada e silenciada, e por isso também, vulnerável ao racismo estrutural que marca a sociedade brasileira. A grande motivação declarada do trabalho iniciado junto às comunidades de Família Ozório, Família Campos e Maria Theodora, que depois veio a se transformar em tese de doutorado e, agora, é vertido em livro, está justamente no sentido de injustiça trazido pelo contato com a situação de comunidades negras rurais que foram mantidas à margem da História e, contemporaneamente, continuavam à margem até mesmo do processo de reconhecimento como quilombolas. Se o reconhecimento oficial está longe de significar a solução dos problemas dessas comunidades, o não reconhecimento impõe uma espécie de exclusão dentro da exclusão, impedindo o acesso, por exemplo, às poucas e insuficientes políticas afirmativas ou diferenciadas pensadas para as comunidades quilombolas. É contra esta situação que este trabalho foi imaginado e se levanta.

Tendo origem em uma alentada tese de doutorado de mais de 400 páginas, este trabalho tem o mérito, portanto, de incorporar o diálogo não apenas com a sua banca de avaliação, mas também com as próprias comunidades sobre as quais disserta, mas às quais também se dirige. O livro que é entregue ao leitor e que corresponde a menos da metade do volume apresentado à banca de tese, tem a intenção não somente de tornar a análise mais acessível ao leitor médio não especialista, mas também de oferecer uma descrição empírica e documentada capaz de impactar sobre a própria realidade descrita. Neste ponto, é impossível não retornar à reflexão proposta por Yves Lacoste há quase quarenta anos, quando afirmava que “a geografia – isso serve, em primeiro lugar, para fazer a guerra”, ou seja, para os fins políticos das lutas sociais sobre o espaço, tomando-o tanto como expressão quanto como palco das relações de poder. De fato, a escrita deste texto tem muito pouco a ver com a tarefa de mostrar a pátria, com o objetivo de performatizar o discurso de cátedra, ou com a reificação das comunidades quilombolas como objetos de curiosidade. Cumpridas as exigências impostas pela academia, o trabalho se despiu delas para apresenta-se na sua forma mais interessada e mais instrumental aos embates que eles mesmo narra.

José Maurício Arruti


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