segunda-feira, 5 de março de 2012

Laudos de perícias


Breve nota sobre a experiência com a produção de laudos antropológicos e com a flexão sobre eles

Na medida em que os temas da diferença cultural, das identidades e da tradição vão sendo reconhecidos como centrais à gramática moral das lutas sociais por direitos, vão se multiplicando os espaços e temas em que o antropólogo é chamado a emitir sua opinião. Isso tem atribuído centralidade à disciplina e aos próprios antropólogos em determinados tipos de conflitos sociais, mediados por processo de justificação científica. Generalizam-se os problemas até pouco tempo experimentados quase exclusivamente por etnólogos e indigenistas, como, por exemplo, a judicialização da interpretação antropológica.

Minha participação na produção de laudos teve início em 1995, no âmbito de um convênio entre a ABA e a Fundação Cultural Palmares, que reuniu uma equipe de antropólogos para produzir estudos sobre seis comunidades em diferentes estados do país. Nessa pesquisa, além da realização do laudo do Mocambo, coube-me também o papel de supervisor de equipe, encarregado da definição de uma sistemática para o levantamento, reconhecimento e identificação de comunidades remanescentes de quilombos e seus territórios.

Alguns anos depois (1998-1999), eu seria convidado pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI) a dividir a responsabilidade com um antropólogo da própria Fundação pela revisão do território Pankararu. O convite dava um desdobramento prático aos acúmulos etnológicos do mestrado, da mesma forma que o problema a ser abordado decorria do desenvolvimento de determinadas dinâmicas sócio-territoriais que eu havia descrito detalhadamente e, de certa forma, anunciado (em especial o cap. 3, “Etnogeografia”).

Em decorreëncia dessas experiências fui convidado a participar do Encontro do Grupo de Trabalho sobre Laudos Antropológicos da ABA, realizado no ano 2000 em Ponta das Canas (SC), que deu origem a um documento oficial da associação sobre o tema. O encontro teve por objetivo definir os parâmetros norteadores do trabalho do antropólogo em “situações de perícia” e foi composto por um grupo restrito, composto por Alfredo Wagner de Almeida, Ruben George Oliven, Silvio Coelho dos Santos entre outros. Desse encontro de trabalho resultou a “Carta de Ponta das Canas - Documento de Trabalho da Oficina sobre Laudos Antropológicos”, que se mantém como importante referência nos debates internos à ABA.

Terminado meu doutorado, os anos de 2002 e 2003 seriam quase inteiramente dedicados à produção de relatórios ou laudos de identificação étnica e territorial. Além de coordenar os relatórios das comunidades de Preto Forro, da Ilha da Marambaia e do norte do Espírito Santo, eu ainda seria contratado pelo Instituto de Terras do Estado de São Paulo (ITESP) para realizar a identificação territorial da comunidade do Cangume (Vale do Ribeira, SP). Parte deste último relatório me renderia, em 2006, o primeiro lugar no concurso nacional de monografias intitulado “Territórios Quilombolas”, promovido pelo MDA em parceria com a ABA e a Fundação Ford.

Finalmente, uma última e tardia atuação neste campo se deu entre 2008 e 2009, com a produção do relatório de identificação territorial, solicitado pelo INCRA, da comunidade do Cabral, localizada em Paraty (RJ), em um contexto complexo de sobreposição de áreas de preservação ambiental, especulação imobiliária e crescimento do movimento de populações tradicionais, que reúne quilombolas, indígenas guarani e caiçaras.

Além de produzir esse conjunto de laudos, eu atuei também na proposição de espaços dedicados a discutir as tensões, dilemas e paradoxos, tanto quanto as oportunidades e descobertas decorrentes deste tipo de trabalho desde o ponto de vista da disciplina antropológica. Isso tfoi feito, por algum tempo, por meio da organização regular de GTs nos encontros da RBA, ABANNE e RAM. Duas das últimas experiências foroam o GT “Os Usos da Antropologia em Tempos de Multiculturalismo Oficial”, realizado na RAM de 2009 em parceria com a profa. Morita Carrasco (UBA) e a Mesa Redonda, com o mesmo título, realizada na RAM 2011 em parceria com Miriam Hartung (UFSC).

Também foi este tema que fez com que eu me integrasse à Rede Latino Americana de Antropologia Jurídica (RELAJU), que tem oferecido bons parâmetros comparativos, assim como boas parcerias na reflexão, fundamentais ao descolamento deste tema das discussões excessivamente centradas nas características da Antropologia brasileira. Isso tem permitido reforçar o diálogo com o campo formado pelos procuradores do Ministério Público Federal dedicados ao tema das minorias e das populações tradicionais, marcado por vários convites pontuais para debates.

Finalmente, o exercício de reflexão sobre o tema ocorreu também por meio dos convites recebidos para realizar encontros de trabalhos com os grupos de pesquisadores que, em diferentes universidades menos centrais (UFPel, UFS, UFMG, UFES, UFGD e UFPR) se envolveram com demandas do INCRA pela realização destes relatórios. Foram todas oportunidades preciosas para observar, trocar e refletir sobre os efeitos destas novas demandas sobre o desenho de um campo de estudos em formação, os estudos sobre comunidades quilombolas, assim como sobre as variações locais da relação entre a Antropologia e tais “trabalhos de encomenda”.

É importante destacar que uma relevante fração desses “trabalhos por encomenda” foi convertida em trabalhos plenamente acadêmicos, que nos permitem extrapolar as abordagens operacionais, para propormos questões mais amplas, em diálogo com os problemas típicos do campo antropológico, historiográfico ou sociológico. Disso resultou o início de formação de um novo ‘campo’ de estudos, que ainda busca tanto o justo enquadramento do seu objeto, a delimitação de temas prioritários e enquadramentos teóricos próprios.

Além disso, ainda que sejam revertidos em trabalhos plenamente acadêmicos, a sua proximidade temporal e interpretativa com as ações (políticas, administrativas e jurídicas, quase sempre ainda em aberto e em torno das quais se mantém a luta por classificações e interpretações) vividas pelas comunidades a que se referem implica uma condicionante do arco interpretativo a princípio disponível. As mesmas razões também acabam for funcionar como um constrangimento às revisões rigorosas dos trabalhos realizados, em função do risco deste criticismo acadêmico reverberar sobre os trabalhos que estão na sua origem (os laudos), alcançando efeitos não só acadêmicos, como também políticos, desfavoráveis às comunidades abordadas.

Finalmente, cabe uma breve nota sobre a dimensão institucional deste campo em formação. Em um primeiro momento (1995-2001), a produção de trabalhos sobre comunidades negras rurais ou quilombolas foi marcado por um ritmo variável e incerto. Com exceção dos Núcleos e Laboratórios que já trabalhavam sobre temas afins e, por isso, já tinham uma agenda que incluía pesquisas sobre essas comunidades (em especial o NUER/UFSC e o NAEA/UFPA), a produção tendeu a acompanhar o ritmo pelo qual a Fundação Cultural Palmares ou os Institutos de Terras estaduais responderam às demandas do movimento quilombola, cuja força de articulação sempre foi muito desigual entre as diferentes regiões do país. Enquanto a FCP contratava laudos para comunidades selecionadas de uma lista nacional mais evidente, os institutos de terra de São Paulo, Pará e Maranhão assumiam destaque na produção de repertórios localizados de estudos, em associação com universidade federais (UFPA), com organizações da sociedade civil (Projeto Vida de Negro/MA) ou por contratação ad hoc (SP).

O motor impulsionador desses trabalhos fica congelado a partir de 2001, com o decreto do FHC, que restringia ao mínimo a possibilidade de reconhecimento dessas comunidades e criminalizava a sua regularização fundiária por parte dos Institutos de Terras Estaduais.

A partir de 2003 (com o decreto que regulamenta o artigo ADCT68-CF88) as encomendas oficiais de pesquisas destinadas ao reconhecimento das comunidades quilombolas passam a ser concentrada no INCRA e, depois de longas disputas internas sobre a adaptação do órgão às suas novas funções, depois de 2006 retoma-se as encomendas às universidades os Relatórios Antropológicos, que tem um lugar central nos Relatórios Técnicos de Identificação e Delimitação (RTID) dos territórios das comunidades quilombolas.

Assim, a produção de pesquisas antropológicas, de caráter monográfico e pautadas por um rol estrito de questões empíricas a serem observadas, ganha extensão efetivamente nacional, ainda que as listas de prioridades na produção desses estudos continuem sendo definidas, em geral, por critérios estabelecidos pelas Superintendências estaduais do Incra em resposta à capacidade de pressão dos movimentos quilombolas locais.

A demanda oficial canalizada para as universidades acabou promovendo o surgimento de um número expressivo de trabalhos monográficos de pequeno porte e marcados por uma série de restrições (principalmente de tempo, objetivos e linguagem) sobre comunidades negras por todo o país. Rapidamente comparável ao volume disponível para outros campos de estudos mais antigos e estruturados, esta produção impulsionou a constituição de grupos de pesquisa em diversas dessas universidades, como um modo característico dos acadêmicos responderem ao desafio posto. De fato, para realizar um grande volume de relatórios sobre um tema novo, ao qual faltava apoio bibliográfico extenso, tradição interpretativa ou metodológica estabelecida, assim como autores consagrados, exigia um esforço que tem mais chances de ser bem respondido por meio do trabalho coletivo e da promoção do diálogo horizontalizado. Em um efeito em cascata, surgem também os Grupos de Trabalho nas reuniões científicas especificamente vinculados ao tema, as primeiras publicações coletivas, e de teses e dissertações que ampliam o repertório de referências em torno do tema específico das comunidades quilombolas.

Tal relação, estabelecida entre as demandas oficiais por relatórios antropológicos e a constituição de grupos de estudo e pesquisa no interior das universidades foi interrompida pela adoção, a partir de 2011, do chamado Pregão Eletrônico, como ferramenta de contratação dos relatórios antropológicos e produção dos RTID. Perto do fim do período dos dez anos do decreto 4887/03, uma nova reviravolta na normatização do reconhecimento das comunidades quilombolas não apenas tem efeito sobre a organização desse campo de estudos em formação, como está dirigida especificamente para a ele.

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