sábado, 3 de março de 2012

Pesquisa e intervenção (Koinonia 1998-2005)

Tudo começou com o convite para colaborar na organização de um dossiê sobre o tema “Comunidades Negras Tradicionais: afirmação de direitos” para a Revista Tempo e Presença. O convite emergia do desejo da ONG Koinonia avaliar em que medida a abordagem das comunidades quilombolas poderia dialogar com a abordagem das comunidades de terreiros, trabalhadas pela instituição por meio de uma linha de assessoria para o “diálogo inter-religioso” e regularização fundiária. A repercussão deste primeiro trabalho levou a outros, até que eu fosse convidado a ingressar na instituição como coordenador de um projeto de pesquisa e advocacy voltado para as comunidades quilombolas do Rio de Janeiro intitulado Egbé – Territórios Negros.

Esta me parecia ser uma forma legítima de dar resposta à “ironia da relação antropológica” que, segundo Geertz, deriva do “trabalho antropológico em países novos”, isto é, a forma pela qual a relação entre o antropólogo e seus informantes se estabelece sustentada em promessas subliminares de que tal relação poderá, em um futuro impreciso, reverter em vantagem aos informantes. Como os “informantes” são, em geral, habitantes dos países subdesenvolvidos e estão quase sempre em uma situação social desfavorável com relação ao antropólogo, viajante do mundo desenvolvido, estes aparecem como “uma vitrine ambulante de oportunidades”, apesar de eles e seu trabalho serem “de fato essencialmente irrelevantes para o destino dos informantes”. Assumi os riscos de experimentar este lugar de mediação entre o discurso e o saber acadêmicos e a ação política. No projeto Egbé – Territórios Negros, que mais tarde seria convertido em uma linha programática da instituição, desenvolvi atividades variadas, mas que sempre buscaram integrar pesquisa antropológica, ações de defesa e promoção de direitos (advocacy) e iniciativas de formação.

Depois de um mapeamento preliminar das comunidades negras rurais do estado, entre 1999 e 2000, demos início aos encontros quinzenais do “Grupo de Trabalho Jurídico”, formado por pesquisadores e estudante, militantes e lideranças comunitárias, advogados e representantes da Defensoria Pública do Rio de Janeiro e do Ministério Público Federal, destinado a estudar, debater e propor encaminhamentos para os conflitos envolvendo territórios quilombolas no estado. Entre 2001 e 2004 o GTJ realizou avaliações pontuais de conflitos, monitorou os processos de regularização de algumas dessas áreas e mediou a assessoria jurídica voluntária para algumas delas.

Como resultado de tais estudos e debates, selecionamos algumas situações a serem abordadas monograficamente. Assim, realizamos relatórios sobre as comunidades de Preto Forro (Cabo Frio, 2000-2002) e da Marambaia (Mangaratiba, 2002-2003), oferecendo, nos dois casos, relatórios ao MPF-RJ, que deram origem a diferentes Ações Civis Públicas. No caso da primeira comunidade, uma Ação contra um processo de grilagem das suas terras e, no caso da segunda, uma Ação contra a própria União, na medida em que as famílias da ilha da Marambaia estão sendo expropriadas pela Marinha de Guerra do Brasil. Neste caso em especial, a Fundação Cultural Palmares, então responsável pela realização dos laudos de identificação das comunidades remanescentes de quilombos, nos solicitou a realização do laudo da Marambaia. Isso deu origem a uma pesquisa maior, na qual eu coordenaria não apenas a equipe do Programa Egbé, mas uma equipe interinstitucional, composta por pesquisadores do Departamento de História da UFRRJ, do Núcleo de Referência Agrária da UFF e do Núcleo Fluminense de Estudos e Pesquisas da UFF.

Por se tratar de uma situação especialmente complexa, envolvendo interesses militares e uma longa lista de desrespeitos aos Direitos Humanos, a pesquisa sobre a Marambaia teve inúmeros desdobramentos públicos, incluindo a produção de diversos textos menores de divulgação, um vídeo-documentário, uma campanha nacional em defesa dos direitos da comunidade e seminários acadêmicos.
[Clique aqui para ver o número especial do Informativo Territórios Negros sobre a comunidade]
[Clique aqui para ver o Dossiê da Marambaia]

Outra pesquisa do projeto Egbé que assumiu grande repercussão foi o survey sobre as comunidades negras rurais dos municípios de Conceição da Barra e São Mateus (ES / 2003-2005). Em colaboração com a FASE e baseada em uma equipe de jovens das próprias comunidades, aos quais demos uma formação específica para isso (capacitação em temas como a história do negro no Brasil, aspectos jurídicos e políticos da “questão quilombola”, noções gerais sobre pesquisa acadêmica etc.), a pesquisa percorreu 30 comunidades, aplicando questionários extensos em aproximadamente 1.200 famílias (estimativa de população total de 5.000 pessoas). Como a pesquisa destinava-se a levantar não apenas a situação social de tais grupos, mas também dados sobre o processo de grilagem de suas terras, ocorrido entre as décadas de 1960 e 70 por uma grande multinacional de celulose, a repercussão pública da pesquisa foi grande. Ela serviu como um catalisador das demandas daquelas comunidades, enquanto os jovens pesquisadores locais, formados ao longo do processo de elaboração, planejamento e aplicação do survey, acabaram acumulando um conhecimento sobre a situação regional que ultrapassou em muito aquele dos mediadores políticos tradicionais. Instalava-se, assim, uma dinâmica de mobilização local absolutamente nova e com vida própria, que mais tarde se converteria em um dos mais significativos movimentos regionais quilombolas, tido hoje como uma das prioridades do movimento nacional. 
[Clique aqui para ver o número especial do Informativo Territórios Negros sobre a região]
[Clique aqui para ler relatório da pesquisa sobre o Sapê do Norte]

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